por Vladimir Passos de Freitas
O desembargador Ferraz de Arruda, em 24 de agosto de 2008, publicou na Consultor Jurídico o artigo Portas Fechadas — clique aqui para ler. Nele, afirmou que o juiz não está obrigado a receber o advogado, que o seu gabinete é bem público privado do Estado e que não consta da Constituição ou da lei o direito à entrevista unilateral com o julgador no recesso do gabinete. Em considerações sobre o assunto, observou que está se tornando rotina desembargadores e juízes aposentados intercederem a favor de partes que estão em litígio e registrou seu respeito pela classe dos advogados, da qual participou.
Inconformada, a Associação dos Advogados de São Paulo representou ao Conselho Nacional de Justiça. O conselheiro relator determinou o arquivamento. Sobreveio recurso e o CNJ, por oito votos a um, determinou a remessa dos autos à corregedoria-geral, como Reclamação Disciplinar. Entidades de classe posicionaram-se a favor do magistrado (Amanages e Apamagis). A OAB-SP apoiou a Aasp. O conflito teve ampla publicidade e as opiniões, exaltadas, se fixaram nos dois lados.
A reação da Aasp, respeitável e antiga entidade, deveu-se certamente ao receio de que o artigo estimulasse o não atendimento dos advogados pelos magistrados. A representação foi dirigida diretamente ao CNJ e não ao TJ local, talvez com o objetivo de que o tema fosse debatido e regulamentado a nível nacional.
O fato, pelo ineditismo de que se reveste e por suas múltiplas facetas, merece análise. E isto deve ser feito de forma serena e desapaixonada. Antecipando dúvidas, esclareço, desde logo, que em 36 anos de vida pública (10 no MP e 26 no Judiciário), sempre atendi, com prazer, advogados e até as partes. Mas, nem por isso, o tema em discussão é de fácil resposta.
Antes de mais nada, registre-se que, em alguns países, o advogado da parte só é atendido na presença do patrono da parte contrária. Neste sentido, o Código Ibero-Americano de Ética Judicial recomenda, no artigo 15, que “o juiz deve procurar não manter reuniões com uma das partes ou os seus advogados (no seu gabinete, ou pior ainda, fora do seu gabinete), que as contrapartes e os seus advogados possam razoavelmente considerar injustificadas”. Na mesma linha, o Código de Ética do Tribunal do Distrito de Colúmbia, EUA (Washington, DC, 1995), que no cânon 3, item 7, estabelece que o juiz não deve permitir comunicação de uma parte sem a presença da outra, exceto em situações especiais. Mais enfático é o Código de Ética Judicial do Paraguai, que no artigo 21, 3, proíbe o juiz de receber em seu gabinete uma das partes ou seus advogados, sem a presença da outra.
No Brasil, a Loman, artigo 35, IV, dispõe ser dever do juiz “atender aos que o procurarem, a qualquer momento, quando se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência”. Por sua vez, o Código de Ética da Magistratura (CNJ, DJ 18/9/2008, p. 1) dispõe no parágrafo único, inciso I, que não será considerado tratamento discriminatório “a audiência concedida a apenas uma das partes ou seu advogado, contanto que se assegure igual direito à parte contrária, caso seja solicitado”.
Destes dispositivos se conclui que: a) o magistrado deve atender em casos extremos qualquer pessoa que o procure (v.g., um pedido de busca e apreensão de uma criança prestes a embarcar para o exterior); b) o juiz pode atender o advogado que o procure, desde que dê igual direito ao do adversário (v.g., alguns ministros do STF, publicam a audiência no site, veja aqui). No entanto, estas regras se contrapõem ao artigo 7º, VIII, do Estatuto da OAB, que dispõe ser direito do advogado “dirigir-se diretamente aos magistrados nas salas e gabinetes de trabalho, independentemente de horário préviamente marcado ou outra condição, observando-se a ordem de chegada”.
O conflito de normas recomenda a interpretação sistemática. Assim, parece-me indiscutível o dever de atendimento nos casos de urgência (v.g., um despejo iminente). E aí é que surge o problema. É que, na prática, é comum procurar o juiz para simples despacho em petição, explicar o caso ou entregar memoriais (nos colegiados). Muitas vezes, sem necessidade. E daí os juízes se insurgem porque a cada entrevista perde-se tempo que poderia ser usado despachando um processo.
A agravar o quadro está, também, o vilão de sempre: o brutal aumento de processos e consequentemente de trabalho dos juízes. Advogados, temendo que sua petição ou memorial se perca nos milhares de peças, procuram a audiência para ter a segurança de que seus pedidos serão examinados. Isto é razoável e compreensível..
Bem, da dificuldade na interpretação das normas à má-vontade de alguns magistrados, passando pelos casos de desnecessidade de entrevista pessoal, de mero tráfico de influências e até mesmo o receio do juiz de ser acusado de proposta ilícita (alguns só atendem com funcionário ao lado), surgem muitas dúvidas e acaloradas discussões. Não é fácil achar solução para todas as hipóteses que a vida oferece.
No rol das probabilidades, qual será o desfecho? Será o articulista processado disciplinarmente por expor, por escrito, sua opinião? Em caso positivo, será punido? Nesta hipótese, seria razoável impor-lhe a grave pena de disponibilidade (Loman, artigo 45, II), já que as penas de advertência e censura atingem apenas juízes de primeira instância (artigo 42, parágrafo único) e remoção não teria sentido?
Irá o CNJ normatizar a matéria através de resolução? Nesta hipótese, como colocar em um texto realidades tão díspares como a de uma distante comarca na Amazônia e outra populosa e urbana na Grande Rio. E, no segundo grau, como fazer? Aqueles que preferem examinar em casa volumosos recursos, em dias em que não há sessão, serão obrigados a dirigir-se diariamente ao tribunal? A normatização será igual para todos? No STJ, ela será cumprida, mesmo sabendo-se o brutal volume de serviço? E no STF, que não se sujeita às normas do CNJ, será diferente?
Bem se vê que o tema não poderia ser mais complexo. Do CNJ se espera uma decisão equilibrada e com o olhar sobre todo o vasto território nacional, com suas notórias diferenças regionais. Não será, por certo, tarefa simples. O artigo do desembargador Ferraz de Arruda, que teve a virtude da coragem, extrapolou em muito o simples conflito local para tornar-se um caso paradigmático. Aguardemos, pois.
Em tempo: Em 1896, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou o juiz de Direito Alcides Mendonça Lima. O magistrado havia declarado inconstitucional uma lei estadual que dispunha sobre a realização do júri. Foi, por isso, processado e condenado por prevaricação, suspenso de suas atividades por nove meses. Defendido por Rui Barbosa, saiu-se vitorioso no STF. O episódio ficou conhecido como “crime de hermenêutica” (vide Os Grandes Julgamentos do Supremo Tribunal Federal, Edgard Costa, vol. 1, págs. 68 a 70).
Revista Consultor Jurídico